O universo dentro dos setores de engenharia das montadoras automotivas e autopeças nem sempre é o mesmo daquele vivenciado pelos seus consumidores finais.
Enquanto estes estão desejando,
negociando e, principalmente, comprando modelos do ano, a cabeça dos
engenheiros está focada no desenvolvimento de modelos que serão lançados daqui a
algum tempo. Essa realidade é muito similar em diversas empresas que desenvolvem
produtos, seja ele automotivo, de linha branca, marrom, eletrônicos,
aeroespacial dentre outros, afinal de contas, empresas que não desenvolvem e
inovam em qualquer mercado que estejam, estão fadadas a desaparecer.
O mesmo acontece em empresas de
software, e um exemplo clássico disso será descrito no decorrer deste artigo,
então, antes de continuar a leitura, separe a xícara de café, sente-se
confortavelmente e prepare sua mente para uma visão no que as empresas de
engenharia de software de simulação estão trabalhando no momento e como isso
vem de encontro com a famosa e tão comentada Indústria 4.0.
Em um passado não tão distante, haviam
discussões constantes nas empresas que trabalhavam na manufatura de peças
estampadas: “A simulação é confiável?”, “Ouvi
dizer que nosso concorrente está conseguindo tirar peças sem problemas de
ruptura já nas primeiras amostras estampadas”, “Isso não funciona, impossível
um programa de computador prever o resultado obtido debaixo de uma prensa”.
Enquanto isso, as empresas de
software, após anos de testes já sabiam e confiavam que era sim possível
acreditar nos resultados da simulação referentes a critérios básicos como
ruptura, rugas, afinamento, etc. Enquanto esse paradigma era quebrado mundo afora,
os desenvolvedores já estavam pensando em como dar o próximo passo: Fazer com
que a simulação também fornecesse resultados confiáveis de critérios
dimensionais, como o famoso e temido retorno elástico, ou simplesmente “springback”.
Nos últimos anos esse desafio tem se mostrado cada vez mais superado. Hoje já é possível ver em encontros técnicos, relatos, artigos, simpósios e workshops, demonstrações de empresas que conseguem, de forma sistemática, a obtenção de peças com mais de 80% dos pontos dentro de sua tolerância dimensional já na primeira amostra estampada / ferramentada.
Apesar de ser algo que vem se tornando uma realidade, ainda existem
algumas barreiras pontuais a serem transpostas no quesito dimensional,
principalmente quando nos referimos a materiais de alta resistência, onde os
requisitos para obtenção de bons resultados são ainda mais rigorosos. Porém, já
está demonstrado que uma rápida e adequada acurácia dimensional pode sim ser
alcançada através do uso de simulações computacionais do processo de
estampagem, desde que as mesmas sejam criteriosamente realizadas.
Atualmente, as empresas
envolvidas no mundo da simulação buscam novas tendências comportamentais e prometem,
em um futuro próximo, resolver muitos problemas que hoje ainda existem, tanto
na área de estampados, como no body-in-white
(BiW), como veremos a seguir.
Quando falamos em compensação do
retorno elástico para garantir o dimensional, quase sempre nos referimos apenas
à própria peça ou peça singela como alguns mencionam. Deixando de lado o fato
de que muitas vezes, ela ainda vai ser parte de um conjunto que, por sua vez,
será montado na carroceria para só então formar o produto final. É aqui que
entra a pergunta que dá título ao artigo, várias peças singelas, cada uma dentro
das tolerâncias dimensionais individuais, resultam em um conjunto montado /
soldado dentro das tolerâncias dimensionais?
Figura 1 - Conjunto Montado virtual CAD-0
Se você já teve a oportunidade de trabalhar ou interagir com alguém que trabalhou no departamento de BiW, certamente você saberá que a resposta negativa para esta pergunta é simples e direta, e ela é assim por conta de pelo menos três fatores:
1-) A “soma” das tolerâncias individuais podem levar a um valor fora da tolerância do conjunto.
2-) O Processo de junção, tanto relacionado a localização das uniões, como a sequência em que elas são feitas, podem impor tensões ao conjunto e que, somadas às tensões iniciais de estampagem, o tirem do dimensional.
3-) Tensões dos processos anteriores e/ou
do próprio processo de união (solda por exemplo).
A Figura 1 exemplifica o objetivo, que é perfeito no mundo virtual, onde a exatidão é garantida matematicamente. Já a Figura 2, representa a realidade em que vivemos, onde conseguimos sim peças dentro de uma faixa de tolerância dimensional, mas nunca “perfeitas”.
Figura 2 - Conjunto Montado no Mundo Real - Tensões internas
E aqui, entra mais uma questão:
Até que ponto vale a pena dispender exaustivas horas de trabalho para se compensar
desvios geométricos em uma peça que será montada em um conjunto, sem antes
avaliar o que acontecerá quando o conjunto for montado?
Para tentar exemplificar o acima citado, usaremos um exercício didático mostrado na Figura 3, um conjunto de capô, que consiste, de forma simplificada, em 4 peças, sendo elas: Capô externo, capô interno, reforço da fechadura e reforço interno.
Figura 3 - Conjunto didático de um capô
O processo comum que hoje é
observado em montadoras para manufatura deste conjunto, é o descrito acima,
onde tanto as peças make (realizadas
internamente) quanto as peças buy (compradas de parceiros de negócio)
são projetadas tendo critérios individuais e são, em sua maioria, aprovadas de
forma individual. Processo que é ainda agravado pelo fato de que, na grande
maioria dos casos, os paineis maiores (interno e externo) são peças make,
com um processo de desenvolvimento que segue uma determinada linha de raciocínio,
enquanto os reforços são passados a fornecedores (peças buy), que se
preocupam em atender as exigências para aquela peça individual.
Imaginem que o seu time de
engenharia se esforce, e entregue o capô externo do exemplo acima, depois de
horas de engenharia, simulação, construção e tryout, dentro da tolerância
dimensional para a equipe de grafagem. Essa mesma equipe de grafagem, recebe um
painel interno que não foi feito com o mesmo cuidado e está fora do dimensional,
talvez devido a tensões imputadas ao processo por um dos reforços.
Por se tratar de um painel em
material macio e de baixa espessura, a tendência é que o painel externo se
molde ao subconjunto interno, levando o resultado do conjunto completo a também
estar fora da tolerância, fazendo com que todo o esforço do seu time, tenha
sido em vão.
Ao chegar até aqui, vocês podem
estar pensando: “Ok, entendi, mas o que isso significa? Que não devo me
preocupar em compensar o painel externo?”
O ponto aqui é: Não é possível
saber qual seria a melhor estratégia a ser aplicada sem uma avaliação prévia.
Hoje, já existem tecnologias que permitem isso e mostraremos aqui, como
utilizá-las e como elas podem alterar o processo atual de manufatura.
A Figura 4 mostra resultados de springback das simulações do painel externo e interno, ambos medidos com relação a suas condições nominais CAD-0, conforme o produto. É possível observar valores altos de springback para ambas as peças. Notamos também peculiaridades, como o desvio em direções opostas em regiões que são sobrepostas no conjunto final, como destacado na imagem.
Figura 4 - Springback Capô Externo e Capô interna
Já a Figura 5, apresenta os
resultados de springback do subconjunto interno soldado, formado pela estrutura
interna do capô, somada aos dois reforços mencionados anteriormente. No lado
direito, temos o resultado de springback após a grafagem do conjunto completo,
composto pelo painel externo e o subconjunto soldado.
Aqui, vale a pena mencionar
pontos interessantes, que podem passar despecebidos:
1. O
resultado inicial dos desvios dimensionais do conjunto grafado, é diferente
quando comparado as peças singelas e, por incrível que pareça, não tão longe de
um resultado satisfatório, como estão as peças individuais;
2. Nenhum
dos painéis mostrados nesse primeiro cenário, passou por uma correção
dimensional prévia;
3. As
áreas de match da carroceria no resultado final, não estão tão ruins, quanto
nas peças singelas.
Figura 5- Springback do Conjunto Soldado e do Conjunto Grafado
Como ainda temos regiões fora da
tolerância, foi uma aplicada uma compensação de springback, inicialmente apenas
no painel interno e usando como referência o painel nominal CAD-0. A Figura 6
mostra os resultados dessa compensação tanto no painel singelo quanto no
resultado do subconjunto soldado. Esse novo subconjunto foi substituído no
processo de grafagem e a Figura 7 mostra o resultado de springback do conjunto
atualizado.
Figura 6 - Springback Capô Interno Compensado e do Conjunto Soldado
Figura 7 - Springback do conjunto grafado (sem compensação no painel externo)
Uma melhora nas áreas de match é
observada, agora totalmente dentro da tolerância. Nota-se também a existência
de regiões negativas na parte externa, que são reflexos ainda da peça singela,
o que significa dizer que estas regiões não são influenciadas pelos outros
processos, e a saída é compensá-la na origem.
Aqui, entra uma novidade. É
possível usarmos o resultado da Figura 7, para criar uma referência virtual a
ser usada na compensação do painel externo. Dessa forma, apenas as regiões de
interesse serão compensadas, mantendo as áreas que já estão dentro da
tolerância intactas. O resultado desse método é mostrado na Figura 8. Ela
mostra, para fins comparativos, a simulação original do painel externo do lado
esquerdo, e do lado direito a simulação compensada apenas nas regiões que
apresentaram desvios no conjunto final.
Figura 8 - Capô externo sem compensação e Capô compensado com base no resultado da grafagem
Este resultado é então levado
novamente ao processo de grafagem e um novo cálculo é realizado, chegando ao
final mostrado na Figura 9, que contém um conjunto dentro do dimensional.
Figura 9 - Conjunto grafado final
Os olhares mais atentos já devem
ter percebido quais impactos o processo descrito acima podem causar, mas
colocaremos aqui os principais pontos em destaque:
·
O painel interno foi compensado na maneira
padrão, usando como referência o produto nominal, CAD-0;
·
A compensação do springback do painel externo
foi severamente reduzida, reduzindo vários riscos, entre eles, o de criação de
defeitos de superfície durante este processo;
·
As tolerâncias dimensionais do painel externo
podem ser liberadas, especialmente nas regiões de match;
·
O método reduziu significativamente os esforços
necessários na compensação de springback de várias peças do conjunto.
Isso significa dizer que,
alterando um pouco nosso processo atual e utilizando as tecnologias disponíveis
no mercado, podemos gerar savings grandes em horas de engenharia e tryout tanto
nos painéis estampados quanto nos conjuntos e subconjuntos. Paradigmas precisam
ser vencidos para que isso um dia se torne realidade. Sobre esse ponto de
vista, podemos colocar dois pontos como conclusão:
1. Já
existem grandes empresas fazendo testes com esse método e obtendo excelentes
resultados;
2. A
algum tempo atrás quem imaginaria que seria possível tirar um paralama com 85%
dos pontos dentro da tolerância dimensional na primeira peça ferramentada, o
que hoje se consegue obter de forma sistemática? Por que não podemos acreditar
que no futuro isso também possa acontecer com a avaliação de conjuntos e
subconjuntos como um todo, incluindo processos de grafagem e união?
Sabemos que se trata de um
assunto polêmico e deixamos a cargo de vocês a reflexão sobre este tema. Estamos
sempre abertos a discussões, não hesitem em nos contatar!
Obs.: Os cálculos e exemplos
mostrados aqui foram executados com o software de simulação AutoForm® tanto
para os estudos de conformação, grafagem e todos os processos de união e
montagem dos conjuntos e subconjuntos.
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Fernando Henrique Tersetti
Engenheiro de aplicação na AutoForm do Brasil e integrante da equipe técnica responsável pelo suporte a aplicação do software no mercado brasileiro e argentino, possui 10 anos de experiência na indústria automobilística tendo atuado na área de projetos de ferramentas para estamparia e simulação de processos de estampagem. Possui graduação em Engenharia de Controle e Automação e cursa MBA em Gerenciamento de Projetos. +55 11 4121-1644 /