É indispensável conhecer o trabalho de Eugene Merchant para entender a possibilidade de evolução e simplificação de um modelo teórico de formação do cavaco já apresentado anteriormente por Vaino Piispanen (ver resenhas já publicada pelo site sobre o modelo de Piispanen).
E além disso, Eugene Merchant em seus dois textos intitulados Mecânica do Processo de Cortar Metais (como tradução do título original em Inglês Mechanics of the Metal Cutting Mechanics), deixa certo que a investigação em usinagem deve acontecer não somente em laboratórios de pesquisa nas universidades, mas também deve ocorrer na indústria que efetivamente realiza a usinagem como atividade central de transformação.
Assim,
esta resenha apresenta as principais idéias deste pesquisador que trabalhou no
setor de pesquisa e desenvolvimento da empresa secular Cincinnati
Milling Machine Company, em Ohio. A data original do artigo é Novembro de 1944,
com publicação impressa em Maio de 1945. E sua publicação, bem como o trabalho
contemporâneo de Piispanen foram publicadas no Journal of Applied Physics.
Uma
importante colocação é feita na introdução do artigo, que é a necessidade de um
entendimento quantitativo da mecânica do sistema no que se refere às forças,
tensões, deformações, velocidades e distribuição de energia envolvidas neste
sistema. Este entendimento serve de base para o controle do sistema superando
apenas o caráter empírico, ou o método de tentativa e erro. E particularizando
este pensamento para a usinagem, o conhecimento do sistema formado por
Ferramenta-Cavaco-Peça é indispensável para controlar a ferramenta de corte bem
como a máquina operatriz por detrás destes elementos.
A
divisão do artigo original é diferente daquela que se realiza atualmente, pois
Merchant divide o texto pelos assuntos específicos, e não através de uma
estrutura formal como um texto científico apresenta (Introdução, Revisão,
Método experimental, Resultados, Discussão e Conclusão). Após uma breve
introdução, o texto é dividido pelo tópico: Corte
Ortogonal e o Cavaco Tipo 2.
O
estudo apresentado é exclusivo para uma operação no qual a superfície de saída
é plana e aresta é um segmento reto. E o corte ortogonal entendido por Merchant
como a condição que a aresta de corte é perpendicular à direção do movimento
relativo entre ferramenta e peça.
Um
detalhe muito curioso que Merchant utiliza em seu texto como uma forma de
descrever a aresta de corte em torneamento, é que a ferramenta possui duas
arestas de corte e não apenas uma, como se descreve atualmente. Merchant
considera que o raio de ponta que produz o acabamento na peça é uma segunda
aresta de corte separada da primeira em sua análise. Assim a aresta principal é
o trecho reto enquanto a aresta secundária é o texto raio de ponta. E de
maneira indispensável para formar a condição geométrica no corte ortogonal, a
profundidade de corte é elevada
comparada com o valor do avanço por volta e a ferramenta não possui apreciável
raio de ponta.
Neste
momento, o leitor deve entender que o cavaco tipo 2 é o cavaco contínuo sem
formação de aresta postiça de corte, que ocorre no corte de material dúctil. E
para informação do leitor, o cavaco 1 é o cavaco descontínuo que ocorre no
corte de materiais frágeis e finalmente o cavaco 3 é aquele contínuo com aresta
postiça de corte. A primeira figura do texto de Merchant, produzida com certeza
antes de 1945, e vista em inúmeras publicações científicas sobre a mecânica da
formação do cavaco, é apresentada a seguir. O material usinado é o SAE 1112
usinado à 237,74 m/min, e utilizou ferramenta de metal duro.
No próximo tópico denominado Geometria da formação do cavaco Tipo 2, o autor dispensa comentários para afirmar que o corte ocorre por cisalhamento. E aproveita para definir a primeira grandeza matemática do texto, que é o ângulo do plano de cisalhamento.
Além disso, o ponto interessante que demonstra uma significativa mudança na
descrição da deformação que ocorre durante a usinagem, é que apesar de Merchant
aceitar a idealização proposta por Piispanen sobre “o Baralho de Cartas”
submetido à um movimento de escorregamento destas “cartas”, Merchant acrescenta
que as “cartas” se deformam devido, e a direção do alongamento das “cartas”
coincide com a direção do eixo principal da “carta” recém deformada. Acredito
ser indispensável apresentar a figura proposta por Merchant para que o leitor
entenda a próxima grandeza matemática definida pelo autor, que é o ângulo de
inclinação da deformação das cartas após estas atravessarem o plano de
cisalhamento (y). A palavra carta encontrasse entre aspas por um
motivo óbvio, que é visto nas figuras 2 e 3, que faz diferir o trabalho de Merchant
do trabalho de Piispanen. As figuras 2 e 3 apresentam esta diferença com muita
facilidade.
O leitor neste momento, ao observar
muito bem as figuras conclui: “as cartas são as esferas!”.
E isto é
notoriamente diferente entre Piispanen e Merchant. A qualidade das figuras é
muito boa, onde se encontram os ângulos do plano de cisalhamento e de inclinação
da deformação. E além disso também pode ser visto o ângulo de saída (a). A equação 1
relaciona estes três ângulos como sendo:
Além desta
primeira relação geométrica, que indica que os ângulos de cisalhamento e de
inclinação da deformação possuem uma relação com o processo de deformação, para
um valor de ângulo de saída constante.
Merchant
com muita simplicidade define a grandeza deformação em cisalhamento (e) sendo a
relação entre espessura deformada da “carta” (Dx) e a quantidade de deslocamento
sofrida (Ds). A figura 4
ilustra facilmente estas grandezas. É válido sempre lembrar que no limite, a
espessura deformada tende a zero. E para um corpo contínuo deve ser zero. Mas
para uma modelagem atual, a espessura será o menor elemento a ser analisado,
por exemplo, em uma malha finita (para produzir uma análise por elementos
finitos).
E a relação
que resulta na deformação cisalhante será a equação a seguir expressa por:
Mas a
partir da figura 4 também é possível escrever a equação 2:
Quando finalmente é possível igual as equações 1 e 2 que resulta na igualdade 2-a:
A
deformação em cisalhamento também é chamada de deformação natural. Este valor é
importante, pois o produto da deformação natural pela tensão média de
cisalhamento resulta no trabalho de deformação (W) por unidade de volume
removido.
Além disso,
a taxa de cisalhamento é outra grandeza geométrica de interesse, que depende
inevitavelmente das relações de velocidade que proporcionam a deformação por
cisalhamento. A relação entre a velocidade de cisalhamento (vs), a
velocidade de corte (vc)
e a velocidade de saída do cavaco (vf). A figura 5 ilustra estas relações de velocidade
que resultam na taxa de deformação.
A
velocidade relativa do cavaco em relação à peça deve ser igual ao vetor soma da
velocidade relativa do cavaco em relação à ferramenta com a velocidade da
ferramenta em relação à peça. As duas expressões a seguir relacionam grandezas
geométricas, ou seja, os ângulos do sistema de corte e as velocidades, tomadas
como constantes, envolvidas neste mesmo sistema.
Ao final
desta desta descrição, é possível concluir que Merchant possuía uma escrita
mais fácil e com maior simplicidade de descrições. Há uma questão que deve ser
observada entre as figuras 3 e 4 é que o ângulo de inclinação do cisalhamento
não foi considerado para definir a deformação natural. Tão logo este é
constante dentro da análise de Merchant. Porém, investigações futuras
demonstraram que este ângulo não é constante, assim como o próprio ângulo de
cisalhamento.
A parte B
do artigo é reservada à explicar o experimento executado por Merchant para
validar suas equações, porém diversos elementos da teoria de formação do cavaco
são apresentados ao longo da parte experimental. Este tipo de escrita, que
mistura teoria e método experimental, não é muito “comum” no meio acadêmico,
porém como já citado, a normatização deste texto é bastante especial. E isto
não é uma conseqüência de ser um texto produzido em um laboratório de pesquisa
de uma empresa, mas por outro lado, é resultado de uma liberdade de criação que
não perde o rigor científico, e não se pauta exclusivamente pela estrutura
formal da produção científica.
E as equações que definem os ângulos envolvidos na formação do cavaco devem possuir pelo menos um valor conhecido experimentalmente, que é o ângulo de plano de cisalhamento (f). E a figura 6 auxilia no entendimento da grandeza denominada taxa de variação de espessura (rt).
E esta variação de espessura é escrita como sendo a equação 5:
Merchant é
muito coerente em afirmar que a equação 5 não é muito satisfatória para avaliar
a taxa de variação da espessura o cavaco devido à um motivo evidente: a
dificuldade de medir ou mesmo estimar a espessura deformada do cavaco (t2). E um
fato curioso é que Merchant classifica a parte “externa” do cavaco aquilo que é
chamado atualmente de lado interno, ou seja, a região serrilhada do cavaco. E
Merchant também define uma taxa de variação de comprimento do cavaco (rL) que
devido à continuidade e ausência de perda de massa, este valor deve ser o mesmo
que a taxa de variação de comprimento. E a equação 5 se torna as equação 6 a
seguir.
E aplicando a equação 6 na equação 5 resultará em uma equação de muita utilidade para estimar o ângulo do plano de cisalhamento, que dependerá exclusivamente da taxa de variação de comprimento do cavaco e do ângulo de saída. Esta equação depende apenas de um valor medido, que é a taxa de variação do comprimento (rL).
Neste
momento, o leito deve se perguntar: como medir a taxa de variação de
comprimento? Merchant esclarece que o método mais versátil e preciso é pesar um
comprimento padrão e conhecido de cavaco conhecido. Este primeiro valor
(medido) é um padrão de massa sobre comprimento que será comparado com o valor
teórico da massa de cavaco removido. A equação 8 resulta facilmente na taxa de
variação de comprimento como sendo:
Merchant declaradamente se apóia nos experimentos realizados por Stanton and Hyde, de 1925 para apresentar a tabela 1. Nesta tabela, as quatro primeiras colunas de valores são aqueles experimentais, devidamente observados e medidos, enquanto as 4 últimas colunas são valores calculados. E nesta tabela Merchant se preocupa em explicar somente o valor deformação em cisalhamento, que é a sexta coluna a partir da esquerda.
E a obrigação de
explicação de Merchant para os elevados valores da deformação em cisalhamento é
porque sob temperatura ambiente, estes valores já representam ruptura em aços. Isto significa que sob temperaturas em
equilíbrio e baixas velocidades de deformação, o aço já haveria rompido por
valores muito menores. E novamente Merchant se apóia em outro pesquisador,
agora é Bridgman (1943) para facilmente justificar tais valores, sendo:
i. A
deformação que produz ruptura em cisalhamento aumenta rapidamente a medida que
a tensão compressiva no plano de cisalhamento aumenta;
ii. Sob
altas velocidades, ocorre aumento da temperatura, e este fator poderá nos aços
aumentar a ductilidade e/ou encruamento.
Um breve
comentário é válido para a segunda justificativa, pois o leitor deve pensar que
para aços baixa liga a ductilidade aumenta, enquanto para aços inoxidáveis é o
encruamento a principal característica afetada.
Ainda sobre
a tabela 1, é possível perceber que a taxa de variação do comprimento do cavaco
e a relação entre a velocidade do fluxo do cavaco e a velocidade de corte
resultam no mesmo valor, indicando validade nas equações, pelo menos para este
processo estudado.
Na
seqüência do texto, Merchant inaugura uma nova sessão para abordar aspectos que
envolvem a força na operação de corte ortogonal. E para este assunto, Merchant
imediatamente declara que é necessário um esquema gráfico que realmente
represente o sistema mecânico, que no caso da usinagem, o cavaco é idealizado
como um corpo separado da peça, em um estado de equilíbrio sob ação de forças
de mesma intensidade, porém sentidos opostos. A figura 7 apresenta o modelo
simplificado do equilíbrio de forças que atuam no cavaco.
Na figura
7, as forças principais R e R são colineares, ou seja, estão alinhadas.
Merchant faz uma nota de rodapé em seu texto informando que isto é uma
idealização que cabe nesta discussão, mas R e R não são necessariamente
colineares. Esta afirmação foi feita com base em outra publicação dele mesmo,
onde este aspecto é abordado, ou seja, a não colinearidade de R e R.
A partir da
figura 7, é visto que R é uma conseqüência das componentes F e N, sendo estas a
força normal exercida pela ferramenta no dorso do cavaco (N) e a força de
atrito de deslizamento entre o dorso do cavaco e a superfície de saída da
ferramenta (F).
E as
componentes de força que resultam em R são Fs e Fn, ou Ft e Fc. Fs é a força de
cisalhamento no plano de cisalhamento enquanto Fn é a força normal exercida no
ponto considerado ortogonal ao plano de cisalhamento. Ft é a componente
perpendicular à direção de corte.
Para
Merchant, após o leitor entender quais são as componentes de R e R, é possível
ler estas forças em um diagrama condensado no qual se considera o equilíbrio em
um ponto exclusivo considerado usualmente na ponta da ferramenta de corte. Ou
seja, a figura 8 é uma versão da figura 7 com o equilíbrio ocorrendo com a
demonstração apenas de R.
Neste
momento do texto, Merchant reivindica para uma publicação sua, apesar de
confidencial, como pode ser lido na referência bibliográfica, que a figura 8 é
de sua autoria, enquanto a figura 7 surge a partir de Piispanen, lida na
resenha anterior. E aproveita para dizer que Piispanen não seguiu com mais
resultados sobre a mecânica do corte ortogonal.
Com base na
figura 8, a seguintes relações podem ser escritas:
E a última
sessão do texto original se concentra em explicar o experimento realizado por
Merchant para validar as equações 9 à 16. É apresentado o esquema experimental,
com especial atenção no dinâmometro mecânico para medir Fc e Ft. A figura 9
apresenta o dinamômetro e seu funcionamento é imediatamente suposto: o Castelo
porta ferramenta está apoiado sobre vigas com comportamento mecânico à
deformação conhecido. Isto significa que ao realizar a usinagem, os relógios
apalpadores vão indicar a quantidade de deformação que as vigas internas
sofreram, e com isto é possível conhecer as componentes de força Fc e Ft.
A partir da
medição de Fc e Ft e do conhecimento de detalhes geométricos que são condições
iniciais dos ensaios, é possível obter um mapa de resultados assim como aquele
apresentado na tabela 2.
Merchant
não realiza uma extensa discussão sobre os valores calculados, mas apenas
salienta que o elevados valores do coeficiente de atrito são objeto de uma
outra investigação conduzida por ele junto a H. Ernst, porém aspectos de não
formação de filme metálico com baixo coeficiente de atrito por adsorção, além
do próprio contato metal-metal sob baixa força de cisalhamento é a principal
explicação para o elevado valor do coeficiente de atrito.
Como
conclusão, acredito que o texto do Merchant é fundamental para entender a
mecânica da formação do cavaco além do ambiente de laboratório. A riqueza deste
trabalho possui uma segunda parte que será discutida futuramente, mas é certo
que o alto nível em planejar o processo de usinagem deve ocorrer desde o
entendimento daquilo que ocorre no plano de cisalhamento, mesmo que a
investigação não permita conhecer todos os valores experimentalmente.
Sugere-se
que o experimento de medir a taxa de variação de comprimento do cavaco passe a
fazer parte das práticas de laboratório, pois este retorno da usinagem ao nível
de seu entendimento físico certamente resulta em melhor entendimento dos
problemas usuais da usinagem, além de uma melhor interpretação de suas causas.
E ao longo do texto que aqui se encerra, fica claro para o leitor que são demasiado sábias as palavras de Merchant quando este se refere em conhecer as grandezas físicas básicas para somente assim conhecer e controlar o funcionamento do sistema. E como dito na resenha anterior, há uma discussão entre o fundador do modelo de formação do cavaco, Merchant ou Piispanen, porém é certo que estes dois nomes são indispensáveis para a reflexão sobre o que é o corte de metais por usinagem.
Ciência
para as massas, até o próximo.
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Marcelo Acacio De Luca Rodrigues
Marcelo Acacio De Luca Rodrigues é Mestre e Doutor em Engenharia Mecânica, graduado em Engenharia de Controle e Automação e Licenciado em Filosofia. É professor universitário e microempresário. É ativista social e pesquisador sobre manufatura, aplicação da ciência e novas tecnologias.